03 Julho 2023
O arcebispo argentino, que completará 61 anos no próximo mês, é um dos assessores de maior confiança de Francisco e o principal “ghost-writer” de muitas das reflexões teológicas do papa.
O comentário é de Robert Mickens, publicado em La Croix International, 01-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco, que tem o dom de “lançar bombas” em julho, enquanto seus antecessores costumavam sair da cidade rumo às férias de verão, voltou a começar o mês com força ao nomear o arcebispo Victor Manuel Fernández, de La Plata (Argentina), como o novo prefeito de Dicastério para a Doutrina da Fé.
Fernández, que completará 61 anos em julho, tem sido um dos conselheiros teológicos e escritores-fantasmas de maior confiança de Francisco, desde os dias em que o papa ainda era cardeal-arcebispo de Buenos Aires. Ele colaborou estreitamente com o então cardeal Bergoglio na redação do documento final da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Celam) de 2007 em Aparecida. Como ex-presidente da Pontifícia Universidade Católica da Argentina, “Tucho” – como ele é familiarmente conhecido – também é considerado o principal autor da Evangelii gaudium (A alegria do Evangelho), a exortação apostólica que é o documento programático do pontificado de Francisco.
Fernández substitui o cardeal Luis Ladaria, o jesuíta espanhol de 79 anos que é prefeito desde 2017. O teólogo argentino também se torna presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e chefe da Comissão Teológica Internacional. Ao levar Fernández a Roma, o papa agora tem outro aliado importante em um dos escritórios mais importantes do Vaticano. Isso deve ser um grande impulso para Francisco, aos 86 anos, ajudando a limpar a oposição interna às suas reformas eclesiais.
Mas a nomeação do novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé também enfurecerá certamente os católicos que não concordam com a visão do papa sobre a Igreja. Em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, em maio de 2015, o arcebispo Fernández despertou a ira dos tradicionalistas quando disse que o Povo de Deus não toleraria nenhuma tentativa de um futuro papa de reverter as mudanças que Francisco já trouxe à Igreja.
Imediatamente depois, Sandro Magister, um veterano jornalista italiano que tem sido um dos vaticanistas mais críticos do atual pontificado, menosprezou as qualificações de Fernández como teólogo sério. Ele zombou dele flagrantemente por afirmar – corretamente, a propósito – que a Cúria Romana não era uma “parte essencial da missão da Igreja” e que “os cardeais também poderiam desaparecer”.
Magister alegou que o arcebispo havia assinado sua própria sentença de morte ao mirar a Cúria e especificamente por criticar o cardeal Gerhard Müller, que ainda era prefeito da então Congregação para a Doutrina da Fé. Agora parece irônico que, exatamente seis anos atrás em relação à nomeação de Fernández, Francisco lançou outra bomba em julho, ao se recusar a renovar Müller por mais cinco anos como prefeito. O alemão, que tinha apenas 69 anos e mais seis anos até se aposentar, não ocupou outro cargo desde que Francisco o demitiu em 2017.
Ao anunciar a nomeação de Fernández, a Sala de Imprensa da Santa Sé divulgou um currículo extraordinariamente longo sobre o novo chefe doutrinal. E, de forma ainda mais incomum, publicou sua bibliografia completa de livros, ensaios e artigos. Além disso, tornou pública uma carta pessoal que o Papa Francisco escreveu a seu compatriota argentino, na qual insta o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé a ajudar a promover a fé em vez de condenar as heresias.
“O dicastério que você vai presidir chegou a utilizar métodos imorais em outras épocas. Eram tempos em que, mais do que promover o saber teológico, perseguiam-se possíveis erros doutrinais”, afirma o papa. “O que eu espero de você é sem dúvida algo muito diferente”, acrescenta o papa, em uma carta que cita extensivamente a Evangelii gaudium.
Francisco continua elogiando Fernández por sua experiência teológica e pastoral, dizendo estar confiante que o novo prefeito será muito capaz de “pôr em diálogo o saber teológico com a vida do santo Povo de Deus”. Ao destacar que o Dicastério para a Doutrina da Fé também tem a tarefa de lidar com os casos mais graves de abuso sexual do clero, o papa diz que a principal tarefa do escritório doutrinal é “guardar a fé” e “tornar-se um instrumento de evangelização” que ajuda a Igreja a “entrar em diálogo com contexto atual naquilo que este tem de inédito para a história da humanidade”.
Francisco exorta o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé a promover uma teologia que apresente “de modo convincente um Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as convoca ao serviço fraterno”.
O Papa Francisco adora dizer aos jovens: “Hacer lío!”, uma expressão em espanhol que pode significar desde “agitar as coisas” até “fazer bagunça”. E a nomeação de Victor Manuel Fernández certamente faz parte de sua própria tendência a lançar bombas no mês de julho.
Tudo começou em seus primeiros meses como bispo de Roma, quando – no dia 1º de julho de 2013 – a Sala de Imprensa da Santa Sé anunciou que ele voaria uma semana depois para Lampedusa, a ilha da Sicília que se tornou emblemática dos desdobramentos crise dos migrantes e refugiados africanos, muitos dos quais pereceram no mar na tentativa de chegar à Europa. A visita de 8 de julho daria o tom para o restante do pontificado.
Mas, três dias antes de partir para aquela crucial viagem de um dia, Francisco fez outra coisa que chocou alguns católicos, mas encantou muitos outros. Aprovou a canonização de João Paulo II e a beatificação de Álvaro de Portillo, segundo prelado do Opus Dei.
Quem pode se esquecer do anúncio surpresa em 4 de julho de 2021 de que o papa jesuíta havia sido levado ao Hospital Gemelli e, naquela mesma tarde de domingo, foi submetido à primeira das agora duas cirurgias abdominais? Mas a verdadeira bomba veio uma semana depois que ele voltou da hospitalização. Foi quando ele lançou seu motu proprio Traditionis custodes. O documento efetivamente anulava o Summorum Pontificum, o motu proprio que Bento XVI emitiu em 2007 para permitir uma celebração e uma promoção irrestritas da missa pré-Vaticano II.
No ano seguinte – em 13 de julho de 2022 – Francisco lançou outra bomba ao nomear três mulheres para serem membros – membros, não meras consultoras – de um dos mais importantes escritórios vaticanos, o Dicastério para os Bispos. Esse foi o segundo choque em tantos anos para os tradicionalistas católicos.
Em 27 de julho de 2018, o Vaticano anunciou que o papa havia aceitado a renúncia de Theodore McCarrick do Colégio dos Cardeais. Francisco, na verdade, havia forçado McCarrick a renunciar, depois que o ex-arcebispo de Washington havia sido acusado de abusar sexualmente de adolescentes e seminaristas. O papa também o forçou a abandonar o ministério ativo e o puniu a uma vida de oração e penitência. McCarrick acabou sendo completamente removido do estado clerical.
E, é claro, houve o anúncio mencionado anteriormente, no dia 1º de julho de 2017, de que Francisco havia decidido que o mandato do cardeal Gerhard Müller não seria renovado como chefe doutrinal do Vaticano. Naquela época, não se podia prever que Francisco acabaria entregando o cargo a seu amigo e assistente teológico argentino. Sim, essa certamente é outra bomba. Mas não pensemos sequer por um momento que será a última.
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Papa nomeia Victor Manuel Fernández como novo responsável doutrinal do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU